SEÇÃO DIÁLOGOS NUR
Nur. Luz em árabe. Uma seção dentro do catálogo da 18ª Mostra Mundo Árabe de Cinema para discutir e refletir sobre os temas, ideias e diferentes visões dentro da grande diversidade do mundo árabe e da sua inquieta cinematografia. Nessa edição, um artigo sobre os filmes históricos “A Última Rainha” dos diretores argelinos Adila Bendimerad e Damien Ounouri e “Ventre Materno” do libanês Carlos Chanine, com os temas da emancipação feminina e ecos de luta anticolonial; entrevistas com Mulayad Alayam, palestino, diretor de “Uma Casa em Jerusalém” e Camille Clavel, francês, diretor de “Bir´em”, esses dois filmes celebram as memórias, a história de uma nação e sua cultura, com atenção especial para a narrativa sobre a Nakba que esse ano completa 75 anos. Temas expostos para demolir preconceitos e generalizações, e reafirmar as visões poéticas como a grande arma contra a opressão e a ignorância que ameaça o mundo.
A HEROÍNA DO COTIDIANO E A HEROÍNA TRÁGICA
Em uma das primeiras cenas do filme libanês “O Ventre Materno”, numa pequena cidade nas montanhas do Líbano, uma mulher, às porta de uma igreja, perturba a paz ao redor gritando desesperada que a imagem da Virgem Maria está vertendo lágrimas. A manifestação parece lançar um sinal de alerta para o que acontecerá naquela pequena e conservadora localidade cristã: algumas mulheres logo se rebelarão contra a ordem estabelecida pelo patriarcado e o papel de submissão destinado à elas. Estamos em 1958 e uma revolta inspirada no nacionalismo árabe do presidente egípicio Gamal Abdel Nasser opõe grupos de muçulmanos sunitas, drusos e algumas lideranças maronitas, ao presidente Camille Chamoun, pró-ocidente e alinhado aos Estados Unidos. Enquanto os homens na belíssima cidadezinha, fiéis a Chamoun estão preocupados com uma suposta ameaça armada – e se preparam também com armas na mão para enfrentá-la – uma inocente senhora francesa e seu filho, o jovem médico Charles, abalam as estruturas da estrita moralidade local. Insatisfeita com o seu casamento e sua posição tradicional de mãe e dona de casa, a protagonista, a bela Laila, interpretada pela atriz libanesa Marilyne Naaman, acaba se envolvendo com o médico francês e ajuda suas irmãs a escaparem de um casamento arranjado e da proibição de estudar. Numa sensível crônica histórica, dirigida pelo libanês Carlos Chanine, a narrativa está imersa em sensibilidade feminina, onde a busca pela libertação e pela realização de desejos reprimidos supera o amor romântico. As moças não são “julietas” desafiando proibições sociais, o personagem Charles é um meio, e não um fim, para alcançar a libertação da personagem principal. O fascínio com o modo de vida ocidental e sua intuída liberalidade é efêmero, logo se esvai e as moças mergulham nas suas experiências da rica vida libanesa. Em uma cena muito significativa, Layla quase é pega em flagrante adultério, mas conta com a solidariedade de um homem da comunidade, ele também conservador como os outros, porém menosprezado por ser considerado homossexual.
Embora o senso comum ocidental enxergue o oposto, a temática feminina e as reflexões sobre papel da mulher na sociedade não são estranhos ao cinema árabe. No próprio Líbano, a mais conhecida das cineastas nacionais, Nadine Labaki, em seu filme “Caramelo” reúne num fictício salão de beleza um grupo de mulheres trocando afetos, vivências e experiências em comum. O cinema do Oriente Médio e Norte da África tem em suas produções muitas roteiristas e diretoras, mais que a maioria dos países ocidentais. Despontam nomes como as palestinas Anne Marie Jacir e Larissa Sansour e as libanesas Joana Hadjithomas e Eliane Raheb. Tratando de diversos temas, elas estão presentes no Líbano, Palestina, Egito, Marrocos, Argélia.
Na atual Mostra Mundo Árabe de Cinema as mulheres e a temática da libertação feminina também estão presentes em um inusitado filme histórico “A Última Rainha”, de Adila Bemdimerad e Damien Ounouri. E embora o cinema argelino tenha se notabilizada por produções retratando a história recente do país, através de filmes como a consagradíssima produção ítalo-argelina “A Batalha de Argel”, de Gilo Pontecorvo, e o épico “Crônica dos Anos de Fogo”, de Mohamad Lakhdar-Hamina, dessa vez os diretores foram buscar uma personagem e uma história do século XVI, mas que lida com questões semelhantes às produções clássicas argelinas como a luta contra a ocupação estrangeira. Na época da narrativa, a Espanha ocupava a nação norte-africana, para se livrar do jugo dos espanhóis os Rei Salim chama o lendário corsário Aroudj Barbarrossa que expulsa os invasores. Não satisfeito com o êxito na batalha, Barbarrosa trama o assassinato do Rei e a partir disso não mede esforços para “possuir” a Rainha Zaphira, interpretada pela codiretora Adila Bemdimeradi, resiste às investidas violentas do corsário ao mesmo tempo que se recusa a voltar para a casa da família depois da morte do marido. Enfrentando um mundo de homens, a heroína incorpora o que os proprios diretores consideram não uma pregação feminista, mas uma narrativa sobre a justiça, “não é justo que essa história seja apagada, uma história feminina, pois nas sociedades mediterrâneas as mulheres desempenham um papel central desde o núcleo familiar”. Mesmo que a existência da personagem não seja comprovada pelos historiadores, o mito revela um modelo, um sentimento feminino coletivo. “A Última Rainha” é um acurado trabalho de pesquisa e produção em todos os seus aspectos: os figurinos luxuosos foram confeccionados depois de um ano de pesquisa, é falado em diversos idiomas como árabe, cabila (língua também falada na Argélia) e sabir (língua franca dos portos do mediterrâneo entre os séculos 16 e 19) uma reconstituição minuciosa dos cenários da época, e cenas coreográficas de batalhas que lembram os filmes de Hollywood. E o que surpreende e valoriza ainda mais essa produção é o fato de ser o filme de estreia de Adila e Damien.
“Ventre Materno” e “A Última Rainha” são históricos e retratam períodos poucas vezes vistos na cinematografia árabe, ambos tratam das questões femininas, um com delicado e comedido tom dramático, outro se aproximando da tragédia grega. Como todas produções artísticas contemporâneas de valor, retratam questões atuais, como a posição das mulheres em suas sociedades e as diferentes visões sobre a influência do colonialismo europeu. Dois filmes que oferecem uma grande oportunidade de desfazer generalizações e preconceitos.
POÉTICO DE UM JEITO POLÍTICO
No final de 1948, a quase totalidade dos moradores do vilarejo cristão de Kafar Birem, ao norte de Nazareth, na Palestina, foram expulsos da cidade por milícias israelenses durante a criação do Estado de Israel, num processo conhecido como a Nakba, que significa catástrofe em árabe. Com o passar do tempo, alguns moradores começaram a voltar para suas casas. Israel reprimiu essa tentativa de retorno, mas em 1954 os moradores ganharam na justiça o direito de lá residirem. Apesar da decisão judicial, no mesmo ano a força aérea israelense bombardeou Kafar Birem, destruindo-a quase que completamente. Mas a história não acaba aí. Em 2014 alguns moradores começaram um movimento para reocupar o local, para um ano depois serem, pela terceira vez, expulsos violentamente da cidadezinha.
Em 2014, assistindo a um vídeo de uma menina de 13 anos andando pelas ruínas de Birem, o diretor francês Camille Clavel, interessou-se em contar a história daquela localidade e de seus antigos moradores. Mas não de uma forma documental, apesar dele já ter dirigido alguns documentários, mas recriando ficcionalmente a história da jovem palestina Nagham, interpretada pela atriz Sama Abuleil, que decide visitar cada vez mais frequentemente a cidade e a casa em ruínas onde o seu avô nasceu e viveu até a expulsão.
“Bir´em” (título do filme) tem um roteiro muito simples, não há nenhuma grande reviravolta, perduram os silêncios da memória. O ritmo é, senão lento, ao menos contemplativo. O que quebra esse compasso são as sutis mudanças de atitude da personagem principal, reconstruindo junto com o seu avô o que Camille define como “uma narrativa da transmissão da memória”. A reconstrução das memórias da casa da família se dá através da decoração das ruínas do antigo lar e de gestos como o de tomar um café com seu avô entre as paredes semidestruídas, enquanto sonham juntos com o retorno. Nagham vai também envolvendo seus amigos em sua busca pela identidade e todos expressam seus anseios e dúvidas sobre o futuro, sua ligação, maior ou menor, com a terra, seus desejos de partir ou lá permanecer. Apesar de ser um drama realista, o filme é embalado pela poesia do desejo e do sonho de liberdade de uma nação. O diretor foge das imagens jornalísticas desgastadas que reduzem todas as questões palestinas a um “conflito” entre dois lados que parecem viver em estado de desgraça insolúvel. É a tal “realidade” a quilômetros de distância da realidade das vidas humanas. Camille nos aproxima dessa humanidade ao mostrar, com todo o encanto e beleza, cenas como a de uma família colhendo, artesanalmente, azeitonas palestinas no lugar das assépticas e industrializadas maçãs de Israel. Apesar de ser francês de nascimento e não ter origem árabe alguma, seu filme parece ser de um palestino, tamanha é a sua ligação com a cultura e a história local. “Quando exibi o filme na Palestina, muitas pessoas me disseram: você é um palestino! Procurei pegar o sentimento local. Gosto de imergir numa realidade, pesquisar, e procuro ter uma visão acurada de tudo. Assisti o vídeo da menina em Birem e sete dias depois eu estava lá. Eu me apaixonei por essa história, por esse vilarejo, levei sete anos para fazer o filme”. O diretor considera a sua obra muito política mas de uma maneira poética, mas é “impossível ter uma relação “balanceada” sobre a política na Palestina. É pura segregação o que acontece lá. A segunda geração pós-48 está muito resignada, não querem protestar. Enquanto os jovens tendem a ser mais inconformistas. Querem ficar na Palestina e reafirmar sua identidade”, pondera Camille. Essa relação da juventude palestina com cidadania israelense – não menos reprimidos em comparação aos que vivem na Cisjordânia – suas memórias e identidade, são também o tema do filme “Alam”, dirigido pelo palestino Firas Khoury. Nessa produção palestina, francesa e de vários países árabes, a presença de bandeira de Israel na escola é um gatilho para uma tomada de atitude por parte de alguns alunos, que pregam uma “rebelião cultural e simbólica”, contestam a história oficial israelense e a conformidade em relação ao sionismo. São reflexões semelhantes trazidas pelos dois filmes, de formas diferentes, retratando personagens e vivências específicas. Como qualquer obra cinematográfica na Palestina, por mais ficcional que seja, está sempre sob a sombra da Nakba e da Ocupação e seu processo contínuo de negação da vida, de destruição de uma nação. Impossível não ser político, a grande arte está em transformar esse drama humano em poesia reafirmando a humanidade palestina ameaçada, como fazem a poesia e a prosa de um Mahmoud Darwish ou Ghasan Kanafani. Sempre uma inspiração para um das cinematografias mais belas do cinema árabe e para gerações de palestinos poéticos e políticos.
A VITÓRIA DA VIDA E DA LIBERDADE
“Uma Casa em Jerusalém” conta a história de uma família judia que muda-se de Londres para Jerusalém Ocidental. A mãe da criança acaba de morrer em um acidente de carro e pai e filha tem que lidar com essa perda recente e se adaptar ao novo país. Mas aquela casa já era habitada pelo fantasma de uma criança palestina, antiga moradora. Uma casa assombrada mas nunca abandonada. Com o uso bem dosado do gênero suspense e terror, e muita emoção, o filme vai capturando o espectador que, quando cai em si, já está envolvido no drama coletivo da Palestina. O sobrenatural é usado para falarmos de um drama real: a contínua expulsão dos palestinos de suas terras, o terror verdadeiro. Para o diretor Mulayad Alayam, ouvido pela Seção Nur, o filme não é uma história de fantasmas mortos, mas fantasmas vivos, de existência passada, com um pedaço de sua alma quebrada, porém vivos.
Como as suas memórias de infância e as histórias que seus pais e avós contavam, acabaram por fazer parte do filme?
Mulayad Alayam – Minha família, tanto do lado materno quanto paterno, são palestinos de Jerusalém que foram expulsos da região e tornaram-se refugiados em 1948. Mas eles tiveram um pouco mais de sorte e estão entre aqueles que, forçados a se refugiar, conseguiram se estabelecer dentro da Palestina histórica, na Cisjordânia, e não tiverem que viver em outros países próximos, como a maioria dos refugiados palestinos. Crescemos, meu irmão Rami e eu, envolvidos emocionalmente pelas histórias que eles contavam para nós sobre a vida que levavam antes da Nakba. Eram histórias sobre os campos, a vizinhança, o comércio ao nosso redor. Meu avô tinha um açougue em Jerusalém Ocidental onde meu pai trabalhava entregando carnes com sua bicicleta nas áreas residenciais, monastérios e escolas. Ele conhecia muito bem todos os bairros de Jerusalém Ocidental. Então é óbvio para crianças como nós, que nossos pais e avós tinham um pedaço da suas almas e espíritos ainda lá, nesses lugares e nessa época. E eles viveram suas vidas com um pedaço quebrado de sua alma. Isso é o que inspirou a história de assombração em Jerusalém Ocidental, inspirou a escolha por fantasmas da vida e não fantasmas da morte. É também a história do que nós deixamos para trás devido a traumas que nos afetam muito, nossa alma está quebrada e um pedaço disso permanece com as pessoas e lugares que nós amamos.
Um filme de suspense como “Uma Casa em Jerusalém” ajuda a contar a história da Nakba para as plateias ocidentais que ainda desconhecem a “catástrofe” Palestina?
Mulayad Alayam – Quando nós desenvolvemos as histórias e os filmes, sempre pensamos em histórias humanas que podem sensibilizar e despertar emoções. No caso dessa história específica, ela foi desenvolvida para ter elementos de um drama familiar junto com aspectos de “casa assombrada”, dentro de um conto de fadas. São tipos de narrativa que tem um apelo popular e atingem plateias maiores, muito além do público do cinema de arte.
O filme nos traz a ideia de que as crianças entendem umas às outras melhor que adultos. Você acha que elas mantêm a humanidade que nós perdemos?
Mulayad Alayam – Escolhemos seguir a narrativa através dos olhos das crianças porque elas não foram corrompidas pela política e pelos preconceitos dos adultos e estão em uma idade que as permite colocar um espelho na frente do rosto do mundo adulto.
O que mantém as duas personagens infantis próximas é o fato que ambas vivenciaram uma grande perda?
Mulayad Alayam – Nós seguimos a jornada pessoal de ambas as meninas que vivenciaram o luto e uma grande perda, mas que também refletem uma perda coletiva e o luto dos refugiados em geral, e palestinos em particular que foram forçados a deixar suas casas e perderam entes queridos.
Em 1948, 750 mil palestinos foram expulsos de suas terras. Como o público fora do mundo árabe reage ao filme? Eles ficam surpresos com essa informação que “Uma Casa em Jerusalém” traz?
Mulayad Alayam – Isso varia de um lugar para o outro. Pra mim o nível de revelação da verdade sobre o que aconteceu e continua acontecendo na Palestina desde 1948 é muito diferente em diferentes partes do mundo e é baseada no controle da mídia, na manipulação e na censura às vozes palestinas. Mas o filme é desenhado de um modo que permite ao público seguir a história independentemente do nível de conhecimento anterior que possui. Ele pode vivenciar e compreender plenamente toda a história. Eu acho que o bom cinema deve fazer você sair da sala de cinema com uma forte sensação no seu coração que permanece com você, permanece na sua cabeça para querer entender e saber mais.
Por favor, nos conte como é filmar na Palestina. Quais foram as dificuldades encontradas?
Mulayad Alayam – Todo o filme feito na Palestina enfrenta infinitos desafios de financiamento, de logística e político. Há inúmeros obstáculos no caminho quando você produz num lugar sob ocupação. No caso de “Uma Casa em Jerusalém”, houve dificuldades adicionais porque filmamos na época da pandemia de covid. Especialmente porque essa foi uma coprodução com equipe e elenco de diferentes países. Mas foi um pesadelo superar todas as restrições de viagens e acompanhar os regulamentos e os protocolos de cada lugar.
Onde foram as locações do filme?
Mulayad Alayam – O filme foi principalmente rodado em Jerusalém Ocidental, na Palestina ocupada, em Jerusalém Oriental e num campo de refugiados em Belém. As cenas subaquáticas foram filmadas na Inglaterra.
O quanto das memórias e tradições têm sido apagadas pela ocupação isrelense? Você acha que seu filme também mostra isso com a presença em cena de bonecas e roupas tradicionais palestinas?
Mulayad Alayam – Tem havido um grande esforço para apagar e dissolver a identidade e a cultura palestina. Mas não acho que esse movimento tenha sido bem sucedido. Pelo contrário, geração após geração de palestinos foram e estão conscientes dessas tentativas de apagamento e se ligam mais fortemente ainda à sua ancestralidade e cultura. Você pode expulsar alguém da sua própria casa, mas não pode silenciar a música, não pode parar a dança, não pode acabar com milhares de anos de agricultura e culinária, por exemplo.
O que significa para um artista palestino ser capaz de expressar-se artisticamente mostrando ao mundo o que a Palestina realmente é?
Mulayad Alayam – Como as gerações anteriores de palestinos, venho de uma geração que enfrentou a censura e entendeu o quanto de dinheiro e poder é investido para silenciar a verdade e apagar nossa narrativa, nossa identidade e nossa memória coletiva. Na verdade, essa é uma das razões que inspira muitos cineastas da minha geração a querer ser cineasta e dividir histórias e filmes com o mundo.
Como você se sente, como palestino, sendo visto e ouvido ao redor do mundo?
Mulayad Alayam – Acredito que os artistas palestinos têm sido muito bem sucedidos através dos anos em quebrar barreiras, em fazer nossa voz ser ouvida, nossa arte ser vista e sentida contra todas as probabilidades. Eu acho que cada ato artístico e cultural na Palestina é uma vitória da vida e da liberdade.